Vila dos loucos

De Enciclopédia Médica Moraes Amato
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Jean-Etienne Esquirol (1772 - 1840), discípulo de Pinel, em seu raro livro “Maladies Mentales” (1838), no capítulo “Notice Sur Le Village de Geel”, traz, pela primeira vez na História da psiquiatria, a descrição minuciosa da “ville de fous”, vila dos loucos, localizada na cidade de Geel, na Bélgica, à nordeste de Bruxelas, a qual visitou em 1821, acompanhado de F. Voisin. Antes dessa descrição não há absolutamente nada, salvo noções muito imperfeitas, sobre esse interessantíssimo capítulo da psiquiatria. A História da vila de Geel e a existência de uma colônia de alienados, existe desde tempo imemoráveis. Esquirol foi atraído ao local pois, enquanto que em todos os outros lugares do mundo existiam loucos e “casas de internamento”, hospícios, asilos, na Bélgica essas casas estavam desativadas e não existiam loucos nas cidades, salvo na vila de Geel, para onde eram removidos ou levados pelos familiares, atrás da cura, por meio do milagre de Santa Dimphna. Conta a lenda que Santa Dimphna, muito bonita, era filha de um rei irlandês, cuja mãe se converteu ao catolicismo pelo padre Géréberne, que batizou Dimphna. Após a Morte da esposa, o rei ficou inconsolável, motivando os cortesões a lhe propor que se casasse novamente. Diziam-lhe, a color de conselho, que o novo casamente fosse com uma mulher muito bela, uma vez que a falecida esposa era belíssima. Um dos conselheiros disse ao rei para esposar a própria filha. Tomado de um desejo diabólico, o rei resolveu propor-lhe Casamento. Dimphna, resolutamente, não aceitou. Para escapar da Cólera de seu pai, fugiu junto com Géréberne, mais o bufão da Corte e sua esposa. Atravessou os mares e albergou-se num lugarejo perto de Geel. O rei, indignado, partiu com os seus soldados a procura da filha, e por meio de uma moeda irlandesa que um dos soldados da comitiva do rei reconheceu ao passar naquele local onde a filha se refugiara, e com a ajuda do alberguista que apontou a direção que tomaram, o rei finalmente encontra a filha em Geel. Dimphna recusa a proposta de seu pai. O rei, muito furioso, decapita-a. Um soldado faz o mesmo com o padre Géréberne. Os habitantes de Geel enterraram os dois mártires, por piedade. Tal tragédia teria ocorrido no final do VI século, segundo os escritos de Petrus Van Kamerejk (1250), cujo documento está conservado até hoje no Museu de Santa Dimphna, em Geel. Há notícias que desde o VII século são conduzidos para lá os “possuídos pelo demônio”, para pedir a interseção de Santa Dimphna e eles vem de várias partes da Europa. Isso seria o começo da reunião de alienados dentro da vila de Geel. No final do século XIII, início do XIV, foi construída uma capela (Santo Amans), depois, em 1349, a construção da nave e da igreja, onde os loucos e seus familiares rezavam para obter a graça. Isso atravessou séculos. Quando Esquirol lá esteve (1821) ficou curioso para saber que cerimônia praticavam para obter a Assistência da Santa. Perguntando a um alienado, soube que era por meio de uma novena que se obtinha o milagre, e não havia louco que chegando à Geel não a fizesse, pois justamente iam com essa finalidade. “Os loucos tranqüilos, fazem-na eles próprios, os que não podem ir à paróquia ou estão furiosos, são representados por familiares ou habitantes da cidade, que rezam por eles” (Esquirol, J.E. Les Maladies Mentales. Tircher, Bruxelas, 1836, p. 295). Esquirol relata que os alienados, homens e mulheres, viviam livremente pelas ruas, sem que as pessoas notassem. Havia alguns furiosos que, em último caso, “lhes metem ferros nos pés e mãos, como um que vimos errando na estrada, com as pernas, do Joelho para baixo, muito machucadas” (Pacheco e Silva, A.C. Aspectos da psiquiatria social. Edigraf, s/d, p. 127). Setenta e seis anos depois da célebre visita de Esquirol à Geel, ou seja, em 1905, Francisco Franco da Rocha, logo após uma visita à essa cidade, de regresso ao Brasil, impressionado com o que lá vira, institui em São Paulo, pela primeira vez na América do Sul, o regime de Assistência Familiar aos alienados, criando a expressão “nutrício” para designar o encarregado de assistí-los. Quase cento e cinqüenta anos depois da visita de Esquirol a “Ville de Fous”, Antônio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988), por ocasião da 5a reunião da Federação Mundial para a Saúde Mental, ocorrida em Bruxelas, incorporou-se a um grupo de Médicos e foi visitar a célebre cidade. Ao chegar à Geel viu ali um verdadeiro paraíso, impressionando-se com a facilidade com que os doentes mentais “se adaptaram ao meio, que os acolhe com carinho e lhes propicia os melhores cuidados”. “Em Geel – relata Pacheco e Silva – é o doente mental que goza do pleno Direito de dar livre expansão aos seus propósitos, sem encontrar Resistência e sem sofrer qualquer espécie de coação. É a Parte sã da população que procura se adaptar ao doente, criando para ele toda a sorte de facilidades para se integrar ao Ambiente. Isso imprime à cidade características próprias, sem exemplo em qualquer parte”. Assim, infere-se que nem o tempo, que tudo modifica, conseguiu quebrar a velha tradição. Quase cento e cinqüenta anos depois da célebre descrição de Esquirol, Geel continuava a guardar as mesmas características básicas que de há muito foram notadas. Embora Pacheco e Silva não tenha se referido a novena, seus relatos mostram que a crença no milagre de Santa Dimphna estava intacta, pois para lá continuavam indo em peregrinação grande número de pessoas conduzindo doentes mentais, na última esperança de vê-los restabelecidos. Pareceu-lhe que as famílias partiam para os seus lugares de origem, e ali deixavam o doente, na certeza de que seriam bem Cuidados e assistidos pela Santa. O autor deste artigo, ao saber, pelos relatos de cerca de 50 anos atrás, que a antiga Vila dos loucos ainda existia, tomado de grande expectativa, foi a Geel em julho de 1996. A velocidade de modificação das coisas nesses últimos cinqüenta anos não foi igual a de cinqüenta anos no passado, ainda que próximo. Nessas últimas décadas as distâncias diminuíram pela extrema facilidade de comunicação, igualando antigas diferenças marcantes. Geel hoje é uma cidade tipicamente européia, como muitas, com cerca de cinqüenta mil habitantes. Que características restaram da antiga vila dos loucos? Em um dia inteiro não se viu um só doente pelas ruas, ao contrário, só pessoas normais e sadias. O habitante local tem plena Consciência de seu passado, mas transcendeu-o, reunindo os fatos históricos no antigo centro da vila, com as construções da época e relíquias do passado, cujos cimélios ficam em Parte no velho Hospital geral, hoje transformado em museu, em Parte na Igreja de Santa Dimphna. Entre os objetos que guarnecem o acervo, há uma urna de Prata com os supostos restos mortais da Santa, que teriam sido achados décadas depois de ser decapitada pelo pai. Todas as imagens da Santa mostram ela com o diabo a seus pés, acorrentado ou esmagado ou dominado pela ponta de uma espada, mantendo-o com a Cabeça no chão, aos seus pés. Representação extremamente adequada, uma vez que a loucura sempre foi possessão demoníaca. Curar é dominar o diabo. Quanto à novena, embora praticada desde tempos imemoráveis, somente recebeu aprovação eclesiástica em 22 de setembro de 1954. Por especial gentileza de Irene Mozée, do St.-Dimphna-en Gasthuismuseum, o autor destas linhas obteve a reza, que é assim: “Oh Deus, amante da pureza, vós que haveis sustentado milagrosamente vossa benquerida mártir Dimphna dentro de sua intenção de preservar sua bela virtude, faça que nós sejamos assistidos pelos méritos e pelas preces daquela cuja celebração respeitosamente festejamos. Por Jesus Cristo, Nosso Senhor. Amém.” Que deve ser rezada três vezes ao dia, por nove dias seguidos. Guido Arturo Palomba