Ética

De Enciclopédia Médica Moraes Amato
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A questão que nos propomos aqui examinar – o médico e o problema ético – nada tem que ver com a chamada “ética profissional”. Aliás, cremos que essa é uma expressão equívoca. Pode haver um código, reunindo determinadas Regras de conduta profissional “conveniente” que, em grande parte, não dirão respeito a problemas propriamente éticos. Mesmo porque – e esta é uma primeira aproxiação de nosso tema – o que caracteriza uma conduta Ética ( e isso é um ganho da Sabedoria Ética dificilmente questionável depois da crítica kantiana) não é a mera conformidade exterior da ação com regras, leis ou princípios, mas a Motivação interior do agente, que o leva à decisão. Entretanto, o médico (e é isso o que justifica o nosso tema) se encontra, por força de sua profissão, numa situação peculiar. Ele age, com grande freqüência, na intimidade do sofrimento e da dor alheios, muitas vezes no limiar entre a vida e a Morte. Não é por acaso que, nas suas origens, o médico se confunde como o chamã, o feiticeiro, o pagé, em quem se espera encontrar a força mágica capaz de dominar, entre outras, as potências da dor e da Morte. Nem a perda de sua Aura mágica, que irá coincidindo, cada vez mais, com o Progresso do conhecimento médico, muda-lhe a situação. Se ele não é mais uma espécie de sumo sacerdote, no segredo de fórmulas capazes de dominar o irracional – e a Morte é o irracional supremo na perspectiva de nossa finitude – ele é ainda, ou se exige que ele seja, alguém familiarizado com aquelas forças capazes de nos corroerem a vida e, por sua ciência, capaz, até certo ponto, de deter a sua ação. O doente, real ou imaginário (pois que o doente imaginário, ainda que de modo especial, é também um doente) que o procura, é o “outro”, permanentemente presente diante dele. É o dependente, em busca de compreensão e alívio, na expectativa de uma palavra carregada de significações. Ora, essa presença permanente do outro, a exigir solicitude e cuidado, integra necessariamente a estrutura da vida médica e é definidora da situação do médico. O Poder deste, tanto quanto a sua impotência, diante do outro, nos dois casos dependente, esclarece a peculiaridade de sua “situação ética”. Ele, afinal, é apenas um homem, que não pode agir senão como um homem, por mais extraordinário que seja, e de quem o outro, dependente, por mais racional que seja e por menos que o confesse, espera que aja como um semi-deus. E por mais “filósofo”, por mais sábio que seja, ele sabe, antes de tudo, que é somente um homem. O texto hipocrático relativo à Decência (ou, de se preferir, decoro ou circunspecção) ensinava que “o médico filósofo (isto é, amante da sabedoria) é semelhante a um deus”. Ele o é, em grande parte, aos olhos do outro dependente; não pode sê-lo aos seus próprios. E ei-lo aí, Superior a si mesmo enquanto imagem projetada pelo outro, talvez Inferior a si mesmo em Face da Responsabilidade diante desse mesmo outro, entregue ao esforço de ser o que deve ser e o que pode ser. Parece-nos evidente que essa descrição se refere a um médico e a uma medicina personalizados, ao “médico de família” que vai rareando cada vez mais com a coletivização da vida, na qual tudo que é pessoal se esfuma e, portanto, em que a responsabilidade, que só pode ser individual, tende igualmente a esfumar-se. Num discurso pronunciado em 1958 em Wiesbaden, sobre O Médico da Era Tecnocrática, Karl Jaspers, que foi um médico filósofo, dizia: “o médico deve tratar tal doente preciso no contexto geral de sua existência. Entretanto, já existe muita gente que pensa que o verdadeiro progresso, em relação a uma época burguesa e individualista, para sempre acabada, consistiria precisamente em fazer desaparecer essa Função pessoal do médico. O doente moderno, pretendem os que assim pensam, não quer absolutamente ser cuidado como Pessoa; ele vai ao Hospital como se vai a uma loja, a fim de ser “servido” da melhor Forma possível por uma máquina impessoal; quanto ao médico moderno, intervém coletivamente e o doente é cuidado sem saber precisamente quem dele cuida”. Entretanto, apesar das tendências coletivas e tecnocráticas, insiste o mesmo Jaspers, “só o médico que conhece pessoalmente seu doente exerce verdadeiramente a profissão médica. Os demais cumprem um Trabalho honroso, mas não são médicos, no verdadeiro Sentido do termo”. E só esse, efetivamente, nos interessa aqui. Os demais podem ter a Consciência de ter cumprido competentemente uma tarefa, sem dúvida altamente necessária, mais ainda que possam ser considerados “médicos”, não enfrentam o problema do outro dependente, que está no Coração mesmo da situação médica, principalmente no que diz respeito à problemática Ética que a profissão envolve. Na sua dimensão realmente humana, a medicina não pode nunca ser socializada, mesmo porque o Paciente continua sendo um ser de carne e osso, concreto. E, por mais que ele se despersonalize, por mais que se transforme em um simples Rosto na multidão, o seu sofrimento, a sua dor, continuam individualizados. Por mais anônima que seja a sua vida, a sua Morte continua sua. E, como uma espécie de contra-prova, poderíamos lembrar que só no âmbito de uma medicina coletivizada poderiam surgir fenômenos como o de uma “greve de médicos”, que contraria o próprio conceito da medicina. Um médico – assim como um Professor – em greve testemunha o esvaziamento do significado mesmo de sua profissão. Até aqui procuramos configurar a situação peculiar do médico, em Face do outro dependente, que dele espera a cura, o alívio da dor, o conforto. Ora, nossas Relações com o outro, a Forma de tratá-lo, são o cerne mesmo do problema ético. E, para quem trata o outro numa Circunstância especial, como alguém que deve ser Superior a si mesmo, o problema ético – se não se o considera resolvido por todo o sempre, mas como um verdadeiro problema – aparece em toda a sua força, como todo o seu peso. Falamos no problema ético. Nem sempre, entretanto, a conduta Ética aparece como um problema. Quem crê estar de posse de uma verdade total e definitiva acerca do Sentido da vida, dessa verdade decorrendo um código inflexível de conduta, não vive a experiência Ética como um problema ou talvez não chegue a viver a própria experiência Ética. Poderá, no máximo, ter dúvidas quanto à aplicação de uma regra a um Caso concreto e, nesse sentido, experimentar algum problema de Consciência. Quando a Ética é integralmente subordinada a um rígido código religioso ou às exigências de uma ideologia, como falar-se de um problema ético? Nesses casos, o crente, religioso ou ideológico, subordina a sua Consciência a um ser abstrato ou a uma Pessoa concreta. Certamente, ele haverá de decidir, ao menos uma vez: quando delega a outrem suas decisões, permitindo, daí por diante, que o seu Procurador decida por ele. É claro que é sempre possível que a Procuração seja revogada, o que implicaria o reaparecimento do problema ético e da decisão. Em muitos casos, apenas para decidir uma Mudança de obediência, uma conversão a outra verdade total e definitiva. Nesses casos, o problema ético apenas surge, quando surge, de raro em raro, pois se trata apenas de subordinar a ação própria a um código exterior. O essencial da vida ética, a Motivação interior do agente, é como que abafado pela subordinação a outrem; a Motivação interior que resta é a constante abdicação dela mesma. Chamaríamos a essa entrega da Consciência – seja a um Chefe religioso, a um líder, a um Partido, a uma Igreja, ao “sentido da história” – de heteronomia. Essa abdicação da Responsabilidade pessoal pode ir do “medo à liberdade”, mais ou menos passivo, ao fanatismo no qual, paradoxalmente, a total passividade da Consciência provoca uma atividade incansável, a negação do “eu” transformada em motor do ativismo. Em outras palavras, a experiência efetiva do problema ético exige a autonomia da consciência, isto é, a subordinação desta a sua própria decisão, importando aqui a Motivação interior da ação e não sua mera concordância exterior com uma regra. Mas o mundo da autonomia, a aceitação da Liberdade como constituinte de nosso “eu”, é perigoso é duro. Pois, o que pode garantir o acerto de minha decisão livre? Por que uma decisão seria melhor – não dizemos mais “conveniente”, afastando logo essa filosofia falaz que é a do utilitarismo – do que outra, contrária ou simplesmente diferente? Como pode um homem (no caso, o médico) carregar o fardo das decisões livres, sem ter nunca a certeza de que elas são as “melhores”? Como conciliar a autonomia, que é condição da experiência moral, com a segurança que almejamos para que nossas ações sejam “boas”? Kant, o campeão da autonomia ética, tentou fazê-lo, sem qualquer apelo aparente a uma Consciência exterior à minha, como a Consciência divina, que ditasse as normas do meu querer. Porque, se elas me fossem impostas de fora, se não decorressem de minha decisão livre, eu mergulharia outra vez na heteronomia, na abdicação de minha Consciência pessoal. Era preciso, ainda, no seu esquema, que minha ação livre tivesse, ao mesmo tempo, valor universal, que fosse a ação livremente decidida por qualquer homem justo. A Solução kantiana do problema dependia da Concepção do homem sustentada pelo filósofo. Nós somos, de acordo com ela, um ser duplo, “homem noumeno” e “homem fenômeno”; homem inteligível e homem sensível. Como ser “noumeral”, inteligível eu sou livre; como ser fenômeno, sensível, estou amarrado ao determinismo da natureza. E mais: como ser inteligível e livre, sou uma espécie de “essência genérica”, sou racionalidade; como ser sensível e determinado, sou um ser particular, este ser concreto, no aqui e no agora. E vivo a experiência da minha Liberdade precisamente ao agir moralmente, isto é, ao subordinar o meu ser sensível ao inteligível. Minha ação, nesse caso, é livre mas capaz de universalizar-se, de acordo com a fórmula geral do dever da Crítica da Razão Prática: “age sempre de Forma tal que a máxima de tua vontade possa converter-se, a todo momento, no Princípio de uma legislação universal”. Há aqui, entretanto, duas observações a fazer. Quanto à primeira, notemos apenas que a Ausência do apelo à divindade, afirmada posteriormente como um postulado da razão prática, é na verdade apenas aparente: se é a via da experiência moral (usemos a expressão de Frederic Rauh) que nos leva à postulação da existência divina, de fato, ontologicamente, essa existência, desde que postulada em nome de uma fé racional, precede a experiência moral e não haveria como não determiná-la. Dir-se-ia que, na ordem do tempo, a moralidade precede à afirmação da divindade e a Consciência pode afirmar a sua autonomia; na ordem da eternidade, entretanto, a precedência divina é incontestável e, sendo assim, não seria essa autonomia um logro? Quanto à segunda, assinalemos que, no Caso como bom representante da Aufklärung, Kant edifica uma Concepção universalista do homem na qual tudo o que é particularidade pessoal, tudo aquilo que faz a riqueza da Pessoa concreta, o que a diferencia para fazê-la aquilo que ela é, é desprezado em nome de uma essência racional genérica. O que eu teria de mais próprio seria aquilo que não me é próprio, original, mas o que é comum a todos os seres racionais. Essa espécie de terror do que é simplesmente individual é, aliás, comum a Rousseau e a Kant, cujas éticas, ademais, se assemelham extraordinariamente*. E convém lembrar que Rousseau, em vista dessa Paixão pelo genérico, – e daí sua Paixão da igualdade – pode ser apontado, malgrè-lui même, como um precursor daquilo que Talmon designou por “democracia totalitária”, em oposição à “democracia liberal”, muito mais ciosa da Liberdade. Essa ética, portanto, não se refere a seres concretamente livre e, duvidosamente autonômica, depende da garantia da divindade. Mas, e se Deus não existisse? Essa é a pergunta essencial de Ivan karamázov e Dostoievsky responde que “se Deus não existe, tudo está permitido”. Mas estará mesmo? Na Ausência eventual de Deus – e o nosso mundo dessacralizado está grandemente marcado por essa Ausência – teríamos, por acaso, de optar entre a “permissividade” (é óbvio que não nos referimos apenas à permissividade escandalosa, ligada ao Vício e ao sexo, mas à “permissividade total” do ponto de vista ético) e a adesão a uma das totalitárias religiões seculares em que se perdem os que nelas buscam salvação? Conviria lembrar uma palavra de Sartre, no final de sua debatida conferência O existencialismo é um humanismo: “ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão”. Mesmo porque, do ponto de vista estritamente racional, desde os Diálogos sobre Religião Natural, de Hume, ou a Crítica da Razão Pura, sabemos que não podemos saber nada a esse respeito. E, se se admite que pode haver uma “fé racional” na existência divina, à moda kantiana, pode haver – e há – uma “fé racional” na sua inexistência. E, de qualquer forma, nossa fé, racional ou não, não produziria sua existência ou sua inexistência. E, por isso, a questão não se altera. Sabemos de nossa existência, da existência dos outros, da existência das coisas e é na esfera desse saber concreto e experimentado que havemos de decidir. Mas por que decidiríamos que nem tudo é permitido? Por que optaríamos pela validade de um mundo ético? É claro que poderia haver respostas práticas, de “bom senso”: se tudo for permitido, ninguém terá segurança, não poderá haver Relações confiáveis entre os homens etc. Mas isso não resolve a questão, nos termos éticos em que foi proposta. Primeiro porque o “mais forte”, como o Cálicles platônico, poderá permitir-se tudo o que sua força permitir – e a experiência dos totalitarismos modernos está a mostrar essa permissividade total até ao nível das nações. E, segundo, porque, como no mito do Anel de Giges, num quadro meramente utilitário, será permitido tudo o que não for visto. E, por mais que fossem ponderáveis aquelas respostas práticas, elas não diriam respeito à Motivação interior da ação e, portanto, ao nosso problema. Sartre, que citamos há pouco, entre as suas sutis e válidas análises de situações morais, escreve na conferência referida: “ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da Liberdade dos outros, e que a Liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a Liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha Liberdade e a Liberdade dos outros; só posso tomar a minha Liberdade como um fim se tomo, igualmente, a dos outros como um fim”. Em outras palavras, se escolho com autenticidade (ainda que não haja regra absbtrata capaz de cobrir os dilemas reais) não o faço de maneira gratuita; escolho-me, escolho a minha ação, na minha Liberdade e em relação com a Liberdade dos outros. Mas por que sou obrigado a querer a Liberdade dos outros? Dizer que a Liberdade de alguém depende da Liberdade de todos pode ser uma bonita frase, mas que significa realmente? Do ponto de vista político, pode, às vezes, a Liberdade fundar-se sobre a escravidão: não foi, afinal, o que aconteceu em Atenas ou nos tempos do Império no Brasil? E do ponto de vista ético, interior, a Liberdade pode perdurar nas consciências livres, independentemente de qualquer Coerção externa, como o mostraram os filósofos estôicos, como o mostram hoje os dissidentes russos. Querer que todos sejam livres é um ideal ético – e falta ainda fundamentá-lo – mas não é uma exigência real para que se funde concretamente a Liberdade de alguns. O que me forçaria a querer a Liberdade dos outros? Mas aqui começamos a Andar em círculos. Quero a Liberdade dos outros – supondo-o que eu a queira, porque quero o ideal ético; mas esse ideal ético é o próprio querer a Liberdade dos outros. E, além do mais, se nada me obriga a querer a Liberdade dos outros e, entretanto, a quero, quero-a gratuitamente. É exatamente nessa gratuidade, de que Satre quis fugir a todo custo, que podemos encontrar, se não uma resposta, ao menos um esboço de explicação. O gratuito, no contexto sartreano, aparece como o indiferente, o capricho. Ora, cremos que Sartre não penetrou o Sentido legítimo da gratuidade, que lhe parece ao nível do “ato gratuito” gideano, mero capricho momentâneo de que os exemplos mais marcantes talvez sejam as ações do Lafcádio de Os Subterrâneos do Vaticano. Ora, o gratuito pode ser aquilo que tem em si mesmo o seu Sentido e o seu fim, como o jogo, ser uma “finalidade sem fim”, como o belo, tal como o entendia o kant de Crítica da Faculdade de Julgar, ou ser uma espécie de “dom”. É nesse Sentido que se Fala da graça divina: ela é um “dom”, uma “doação”. Não um Dom, como aquele estudado por Marcel Mauss, em que se espera uma retribuição (caso, por exemplo, do potlactch), mas pura doação. E o simples Fato de o homem Poder conceber em Deus essa Capacidade de doação significa que esse sentimento não lhe é estranho. Ora, essa doação é uma ato de Amor. E a compreensão desse ato estava vedada a Sartre, incapaz de conceber em Deus essa Capacidade de doação significa que esse sentimento não lhe é estranho. Ora, essa doação é um ato de Amor. E a compreensão desse ato estava vedada a Sartre, incapaz de conceber o Amor além de uma estrita relação a dois, cujo modelo inultrapassável é o da relação sexual, pouco importa, no caso, se hétero ou Homossexual. Concluindo o subcapítulo I, do capítulo III da Terceira Parte de L’être et le néant, Sartre nos Fala da tríplice destrutibilidade do Amor: “em primeiro lugar ele é, por essência, um logro e um adiamento ao infinito, pois que amar é querer que se ame e, então, querer que o outro queira que eu o ame. E uma compreensão pré-ontológica desse logro é dada no próprio élan amoroso: daí a perpétua insatisfação do amante. Esta não vem, como freqüentemente se disse, da indignidade do ser amado, mas de uma compreensão implícita de que a intuição amorosa é, como intuição-fudamento, um ideal fora de alcance. Mais se me ama, mais eu perco meu ser, mais sou reconduzido a minhas próprias responsabilidades, a meu próprio Poder ser. Em segundo lugar, o despertar do outro é sempre possível; ele pode, de um momento para outro, me fazer comparecer como objeto: daí a perpétua insegurança do amante. Em terceiro lugar, o Amor é um absoluto perpetuamente ‘relativizado’ pelos outros. Seria preciso estar só no mundo com o amado para que o Amor conservasse seu Caráter de Eixo de referência absoluto”. (27o edição, Gallimard, 1950, p. 445). O texto, parece-nos, como todo o subcapítulo, aponta muito mais para uma fenomenologia do egoísmo do que para uma compreensão do Amor. Bem melhor do que Sartre, Rousseau já compreendera o Fenômeno do Amor. Também Rousseau começa por ligar o Amor ao sexo, e, como no seu tempo pré-freudiano não se falava ainda de Sexualidade infantil, faz coincidir sua aparição com o momento da Puberdade. A criança, para Rousseau, ama “sua irmã como seu relógico e seu amigo como seu cão”, (Emílio, livro IV) isto é, verdadeiramente não ama, pois circularia num mundo de coisas e não de pessoas. Só o despertar do Sexo nos conduz efetivamente para fora de nós e, por meio de uma escolha, que é, ainda que inconscientemente, obra da razão e não do puro instinto, nos revela na silhueta do ser amado uma pessoa, ao mesmo título que a nossa. Mas, em lugar de considerar o Amor essa verdadeira disputa infinita entre dois eus, (ou entre o eu e outro) fadada sempre ao malogro, Rousseau vê nele o Princípio revelador da Pessoa moral. Não exclusivamente o de uma pessoa, mas o de pessoas que nos são reveladas a partir da descoberta de um outro inicial. E, descobertos alguns outros, chegaremos, aos poucos, à própria idéia de humanidade do “outro em geral”. (Cf. Meditação sobre Rousseau, cit., p.p. 80 a 83). Não é o Caso de discutirmos aqui a visão pré-freudiana da Sexualidade sustentada por Rousseau, pois que nossa preocupação não é a de datar a gênese do amor, mas simplesmente a de acentuar que só ele nos pode descobrir no “outro” algo mais do que um meio ou um objeto, só ele ode apontar-nos o “outro” como pessoa, a mesmo título que nós – e provavelmente ao mesmo tempo. E desde que não entenda o Amor somente como posse, mas como doação, não se compreenderá aquela exigência sartreana de “estar só no mundo com o amado” numa confusão entre uma Forma de Amor e o amor, na sua diversidade” que não é exclusivista e egoísta. Como compreender, por exemplo, a amizade, que é uma Forma de amor, dentro de um esquema como sartreano? Outra Observação a fazer-se, quanto à Concepção rousseauniana, é quanto a idéia de humanidade. Não nos estamos referindo, é óbvio, ao Amor que se tenha pela humanidade, pois o Amor é concreto e ninguém pode amar algo genérico. E, se não amamos sequer a totalidade daqueles que nos são realmente próximos, como se poderia pretender que se amasse alguém que nem sequer é conhecido? O amor, esse “dom”, pode, porque nos descobre o outro como pessoa, como “fim em si”, abrir-nos as portas para o universo ético; não poderá, entretanto, garanti-lo. Para que eu queira a Liberdade de todas as pessoas – e sua dignidade – estejam elas onde estiverem, para que eu não aperte o botão, deixando com vida o mandarim da novela de Eça, é preciso que, a partir desse Reconhecimento do outro, limitado e concreto, eu faça uma nova escolha, que eu me imponha um dever em relação aos homens. Podemos, sempre, do universal deduzir o particular. Toda a Dificuldade da vida Ética está em que, aqui, é o universal que há de depender do particular, pois se trata de fundar o dever, genérico e abstrato, no amor, que é sempre particularidade concreta. E é claro que esse fundamento é precário: nenhuma lógica poderá sustentá-lo. Posso compreender claramente que, para que exista um universo ético, é preciso que todas as pessoas se considerem, umas às outras, como tais, como “fins em si” e nunca como meios; posso compreender que, para que eu aja eticamente, é preciso que eu reconheça a humanidade “em cada Rosto humano”, na fórmula de Fichte. Mas é necessário que eu opte por um mundo ético e terei de fazê-lo tão gratuitamente quanto gratuitamente amo uma Pessoa concreta. Mais gratuitamente até, porque será em nome de um Amor por pessoas próximas e concretas que eu reconhecerei como pessoas seres desconhecidos e anônimos que não amo e que não posso amar. Por isso, o Amor não pode garantir o universo ético, embora seja o seu fundamento. Por isso, o universo ético não pode ser garantido, pois o dever não flui de uma natureza inteligível que se imponha à minha natureza sensível, mas é Produto de uma escolha pessoal, possível graças ao Amor que, na sua concretude, me envolve inteiro, a partir da minha corporeidade sem a qual não existo. Mas, para voltar ao nosso tema específico – o médico e o problema ético – devemos, por hipótese, admitir que, embora precário e gratuito, o médico tenha, consciente ou inconscientemente, feito a sua escolha em favor do universo ético. Mesmo porque, se não o fizer, o que é sempre possível, o problema deixará de existir. Pois convém lembrar de que não nos estamos referindo a um “código de ética”, que permita o julgamento do médico pelos seus pares ou pela própria Justiça institucionalizada, mas nos referimos tão somente ao que é especificamente ético: a Motivação interior da ação. Assim, dirigimo-nos aos Médicos que fizeram a opção, ainda que sem reflexão consciente, por um universo ético, isto é, que vêem em cada paciente, esse outro dependente, um “fim em si”, uma pessoa, digna de respeito e que não deve nunca ser instrumentalizada. Dir-se-ia que essa opção básica e sempre renovada resolve, para o médico (como, de resto, para qualquer homem) o “seu problema ético”? De maneira alguma. Diríamos que é exatamente para ele que o problema se põe permanentemente. Suponhamos que ele faça seu o Princípio formal kantiano, que é uma tradução do ideal de um universo ético, e se proponha a agir sempre de Forma tal que a máxima de sua vontade possa converter-se, a todo instante, no Princípio de uma legislação universal. Escudado nesse princípio, como saber se esta máxima, em casos cruciais, é mais apta do que aquela, que pode contrariá-la, para servir a uma legislação universal? Para ilustrar a questão, apelemos para uma disputa em que se viu envolvido o próprio Kant. Nas suas Reações Políticas, de 1797, Benjamin Constant, visando certamente a Kant, embora sem citá-lo nominalmente, discute, para explicar a sua noção de Princípio intermediário, o Princípio ético segundo qual dizer a verdade é um dever. Ora, imaginaremos uma situação em que eu tenha, em minha casa, escondido um inimigo perseguido por assassinos. Dever-lhes-ia eu, Caso me perguntassem, revelar a verdade, denunciando o amigo, para respeitar o princípio? Pois, se não a revelo, não estaria desrespeitando o princípio? Esse impasse, para Benjamin, se resolve graças ao apelo a um Princípio intermediário: “Dizer a verdade é um dever. Mas, o que é um dever? A idéia de dever é inseparável da de Direito: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de outro. Onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade não é, então, um dever senão em relação àqueles que têm Direito à verdade. Ora, nenhum homem tem Direito à verdade que prejudica o outro”. Nos termos de Benjamin, o Princípio geral – dizer a verdade é um dever é esclarecido pelo Princípio intermediário que, conectando a idéai de dever e direito, dá-lhe Sentido preciso e garante-lhe a aplicabilidade nos casos – e somente nestes – em que deve viger. É evidente que Kant não poderia, de maneira alguma, aceitar tal crítica. Assim, no mesmo ano de 1797, Kant publica, nas Berliner Blätter, o artigo Sobreum pretenso Direito de mentir em favor da humanidade, em que trata de refutar Constant, cuja viciosa argumentação, segundo Kant, se encontra na proposição dizer a verdade não é um dever senão em relação àqueles que têm Direito à verdade. “É preciso primeiramente assinalar – diz Kant – que a expressão ter Direito à verdade é desprovida de Sentido. É preciso antes dizer que o homem tem Direito à sua própria veracidade, isto é, à verdade subjetiva em sua Pessoa. Porque ter objetivamente Direito a uma verdade equivaleria a dizer que depende de sua vontade (...) que uma proposição deva ser verdadeira ou falsa, o que produziria uma singular lógica’. A proposição de Benjamin é uma fórmula confusa, “pois que a verdade não é um bem do qual se seria proprietário e sobre o qual se poderia Reconhecer um Direito de um, enquanto se recusaria o de outro” e, sobretudo, porque o dever de veracidade “não faz qualquer diferença entre as pessoas em relação às quais se possa ter este dever e aquelas em relação às quais seria possível dele isentar-se, mas é um dever absoluto, que vale em todas as circunstâncias”. E, descendo à situação concreta imaginada por Benjamin, escreve Kant: “É possível que, após teres lealmente respondido pela afirmativa ao assassino que te perguntava se aquele a quem ele procurava estava em tua casa, este tenha saído sem que se o assinalasse, escapando, assim, ao assassino e não se verificando o Crime; mas, se mentisse e disseste que ele não estava em casa, e que de Fato ele tenha realmente saído (ainda que tu não o saibas), desde que o assassino o encontre ao sair e perpetue seu ato, legitimamente se pode acusar-te de estar na origem de sua morte”. Deixando de lado a explicação de Benjamin, temos aí uma daquelas “situações concretas” em que, de fato, duas máximas diversas se chocam. Se desconsiderarmos as hipóteses kantianas (o amigo sair ou não de casa, sem o dono saber) parece-nos que, de um lado, se afirma a máxima dizer a verdade é um dever e, de outro, afirma-se a que se refere à intangibilidade da vida humana. E, no Caso concreto, talvez se tenha de sacrificar uma a outra; posso mentir, e com a mentira salvar uma vida; posso dizer a verdade, e com isso sacrificá-la. Escolhemos esse exemplo não apenas porque ele ilustra a Dificuldade da escolha ética, mas também porque ele se ajusta, adaptado, à experiência quase diária do médico, que age muitas vezes nos limites entre a vida e a Morte. Até que ponto, na sua relação com o outro dependente, o médico há de ser veraz? Pensemos nos casos incuráveis: deve alimentar-se a esperança, na expectativa do “milagre”, ou dizer a verdade? E, em relação aos familiares, deve dizer-se toda a verdade ou alimentar a esperança? E, mesmo em relação a estes, se se opta por dizer a verdade, até que ponto se está certo de que se está de posse dela? E, no Caso do Paciente solitário, só no mundo em Face de seu médico, que fazer, contar-lhe ou mentir-lhe? Código algum, na situação concreta em que o médico se encontra, perante um doente, e nunca perante o doente, pode fornecer-lhe uma regra de ação. Só a sua experiência, as suas Relações com esse doente, sua Capacidade de penetrar-lhe a alma, de conhecê-lo, poderão levar à decisão. Sabendo apenas o que sua Consciência manda e sempre incerto quanto às conseqüências de seu ato. Ivan Karamázov dizia a Aliocha: “outro jamais poderá saber até que ponto eu sofro, posto que é outro, e não eu”. E o médico, para a Motivação interior de sua ação, que se refere ao outro, há de se tentar, no ato de decidir, saber sobre isso, ainda que o não consiga. Porque, tenhamo-lo presente, se a decisão Ética se refere à Motivação interior da ação, e não à concordância exterior com uma regra, refere-se a essa Motivação de um ser que está situado diante do outro, que é um fim em si, enquanto Membro de um universo ético livremente escolhido. Em outras palavras, não basta que o médico considere o que é correto apenas para si, como se o outro fosse puro objeto de sua ação, mas também para o outro, que é o fim dessa ação. E aqui chegamos, a partir dessa questão da veracidade, às situações críticas, àquelas situações que, por si sós, impõem ao médico uma escolha ética, a necessidade de uma decisão, independentemente das leis vigentes no seu país. Ilustremos essas situações com dois casos extremamente delicados, do ponto de vista de quem opta por um universo ético, casos que estão na ordem do dia de nossas discussões cotidianas, sendo objeto de debates não apenas médicos, mas jornalísticos e religiosos, e um deles envolvendo freqüentemente as organizações feministas. Queremos referir-nos às questões da Eutanásia e do Aborto. Comecemos por esta. Um dos itens do juramento hipocrático obriga o médico, precisamente, “a jamais fornecer medicação abortiva”. Um comentador de Hipócrates, tratando precisamente desse preceito, escreve que “entretanto, o Aborto não era praticamente condenado, do ponto de vista moral, na Grécia (cf. Doenças das Mulheres, I, 68, 72, 78; Platão Teeteto, 149 d, Aristóteles, Polícita, 14, 10 etc). Teria sido difícil insurgir-se contra o aborto, já que a exposição dos recém-nascidos era tolerada. A interdição, contudo, explicar-se-ia muito bem, desde que o juramento tenha saído dos círculos pitagóricos”. (Robert Joly, Hippocrate – Medicine Grecque, Gallimard Idées, 1964, p. 206). Se pensarmos nos motivos de ordem prática que levaram à admissão, não só de exposição, mas também do aborto, torna-se clara a oposição entre estes e os motivos de ordem Ética contidos no juramento, como que a Reconhecer a sacralidade da pessoa, desde o momento em que é gerada, sacralidade essa que comanda, igualmente, as posições religiosas, especialmente a católicca, acerca da proibição do Aborto. Deixando de lado aqueles casos em que o Aborto se faz necessário para salvar a vida da mãe ou para evitar o Nascimento de um ser Condenado irremediavelmente a uma subvida, que não poderá atingir nunca o estatuto de pessoa, os Costumes e às vezes as próprias leis, em tantos países, fazem prevalecer os motivos utilitários em Face das razões éticas, tornando o Aborto uma prática comum. Mas, no interior de sua consciência, para além dos Costumes e das leis, como há de comportar-se o médico em Face da questão? Ele pode sempre, fiel ao juramento hipocrático, recusar as práticas abortivas em nome da sacralidade da Pessoa. Afinal, os métodos de Controle da natalidade, do planejamento familiar, numa sociedade abundante e esclarecida, poderiam até mesmo evitar que se pusesse o problema do Aborto. Mas, como agir em Face da circunstância, quando se tem a quase certeza de que a Criança a Nascer não é desejada por ninguém e, pior, não terá as condições mínimas de realizar-se medianamente como Pessoa. Sentir-se-á o médico no Direito de eliminar o projeto de pessoa, provavelmente condenada à condição de objeto? O outro poderá vir a ser realmente um “outro” pessoal, um “eu”, ou será um arremedo de ser e tão somente isso? Afinal, se se legitima moralmente o Aborto para evitar o Nascimento de “monstros” (pense-se no Caso da talidomida), até onde irá essa legitimidade? Em nome de salvar a Criança que será enjeitada, de poupar-lhe o sofrimento, a dor e a completa miséria, poderá o médico avançar os limites dessa legitimidade, decidir como um semi-deus, ele que é somente um homem? Por mais que nos repugne a idéia mesma do aborto, (a não ser naqueles casos em que é preciso salvar a mãe ou em que o feto, comprovadamente, não terá mais do que uma vida meramente vegetativa) que elimina uma “possibilidade de pessoa”, não nos cabe, em Função da própria postura que assumimos, dar uma receita, estabelecer uma regra. Se esta pudesse ser objetivamente estabelecida, não em termos meramente jurídicos ou práticos, o problema desapareceria. Mas a questão é que as Regras universais, abstratas, não chegam nunca a esgotar o concreto da Circunstância. E, do ponto de vista ético, o médico terá que decidir. Decidir de cada vez e em cada caso, sabendo que, qualquer que vier a ser sua decisão, ela terá conseqüências morais, para si e para o outro. Ele decidirá pelo outro (a possibilidade de ser que é o feto), contra o outro (p. ex. contra os pais ou contra a Criança em formação) com o outro (os pais e, em certo sentido, o próprio ser em embrião)? Decidirá apesar do outro? A decisão, em última instância, é sua mas, seja qual for, afetará de algum modo a outro. Afetará o outro, mas povoará, qualquer que ela seja, a sua Consciência e o eventual remorso será sempre eu. Por mais que nos repugne a idéia do aborto, voltemos a repeti-lo, não há Regras universais que possam substituir a Consciência do médico e sua decisão. Deixando em suspenso o problema, passemos ao segundo caso, o da Eutanásia. Para os gregos, o termo “eutanásia” significa “morte sem dor”. É este o Sentido da palavra que se encontra ainda em Cícero (Cartas a Atticus, XVI, 7,3). Em português, é ainda o único Sentido que se encontra registrado no Dicionário de Moraes. Já a Caldas-Aulette atualizado, 2a edição brasileira, registra, ao lado do primitivo sentido, um segundo, o “direito de morrer autorizado por lei” e, de Forma mais genérica, o Novo Dicionário Aurélio Fala da “prática pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável”, sem menção ao Reconhecimento ou não dessa prática pela lei. Do mesmo modo registram o vocábulo o The Concise Oxford Dictionary e o Nouveau Petit Larousse.. E é neste Sentido que tomamos o conceito. Sem usá-lo, o Juramento hipocrático, entretanto, proibia a Prescrição de qualquer “medicamento mortal, seja quem for que assim o solicite”. E o comentador Anterior citado (Robert Joly, ob. Cit.) lembra que “a recusa de dar Veneno não se compreende se não se trata de impedir o Suicídio de um incurável: os pitagóricos interditavam o suicídio”. A ser exatamente este Sentido da Prescrição hipocrática, a eutanásia, no segundo sentido, era proibida pelo Juramento, mesmo que o Paciente quisesse a morte, pois seja quem for que assim o solicite inclui, além de outras pessoas possíveis (p. ex. parentes condoídos com a sorte do doente) o próprio Paciente. Se fazemos a Observação é porque há aí uma diferença, ainda que alguns possam considerá-la não relevante. Porque, se o Paciente incurável está plenamente consciente e deseja a morte, o médico decidirá com ele, ainda que contra o seu desejo. Se a Consciência abandonou de vez o paciente, sem que este, incurável, tenha sequer a possibilidade de recuperá-la por um instante (supondo-se que isso possa ser determinado sem nenhuma dúvida) o médico, faça o que fizer, decidirá independentemente dele: não poderá decidir a favor dele ou contra ele, pois não decidirá com ele. Tendo apostado num mundo ético, em que as pessoas são fins e não objetos, em que se revestem de sacralidade, como agir na situação? Esse ser que apenas vegeta, arrasado pela dor e pelo sofrimento, esse fio de vida sustentado pela parafernália dos modernos recursos médicos, se pudesse pensar sobre sua situação, se a Consciência o abandonou, desejaria ainda a vida? E, se consciente e querendo retornar ao nada, não terá o Direito de fazê-lo? O problema seria diverso, se o fim dependesse do próprio Paciente: levar-nos-ia à questão do suicídio, que escapa, do ponto de vista da Análise ética, ao nosso tema. Entretanto, aqui se põe a relação de Dependência do Paciente em relação ao médico. Posto de lado o problema legal, que não cabe neste exame, eis o médico colocado diante de uma Circunstância existencial precisa: como ser mais fiel no seu respeito ao “outro dependente” e à sacralidade da pessoa? Sustentando-lhe a vida como um resto de pessoa, à espera de um milagre que a reanime, ou permitindo-lhe que, necessariamente finita, esta atinja de vez o Limite de sua finitude? em qualquer caso, trata-se de uma decisão que se põe acima de nossas próprias forças. Precisaríamos ser deuses ou semi-deuses para ter a segurança de que nossa decisão é a correta. Mas há, no caso, uma decisão correta? Condenar sumariamente a Eutanásia é, sem dúvida, uma decisão mais fácil: evitando-a, o médico não terá na sua Consciência o remorso de ser, de algum modo, corresponsável por uma Morte. Terá feito o possível para prolongar a vida, ainda quando saiba que o seu esforço é vão. Mas e o outro, mas a Consciência (ou a inconsciência) do outro? O médico poderá sempre lembrar-se de que “onde há vida, há esperança”, justificando a sua recusa – e, normalmente, é assim que se espera que ele aja. Imaginemo-nos, entretanto, no lugar do doente incurável que, ainda consciente, não espera nada e só deseja o seu próprio fim. Sentir-se-á ele, efetivamente, tratado como um “fim em si”, se o obrigam, contra a sua decisão, contra a sua liberdade, a continuar presente num mundo que já não é mais o seu? Não falamos, é claro, de um médico e de um doente presos a um mundo de convicções religiosas, mas de um doente e de um médico que tentam construir o seu universo ético a partir tão somente de sua experiência humana. Como decidir então? Aqui, muito mais ainda do que no Caso do aborto, (que envolve um terceiro e, que, portanto, pode muito mais fácil e coerentemente justificar a recusa permanente do médico em praticá-lo) não se trata de encontrar uma resposta segura, de fornecer um modelo abstrato de decisão aplicável a todos os casos. Compreenda bem o leitor: não tratamos, em momento algum, de justificar o Aborto ou a eutanásia, mas de tomá-los como “situações limite” (haverá certamente outras) em que o médico pode encontrar-se e em que deve decidir eticamente, com o outro, contra o outro ou pelo outro. E, se a decisão é sua, ela não pode, entretanto, ignorar o outro, não um “homem em geral”, abstrato, mas este ser concreto que está diante de si. E se o universo ético se ocupa da Motivação interior da ação, isto é, da decisão própria, esta se refere sempre a um “outro”, que igualmente um “eu” e que é quem a faz possível. No livro hipocrático dos Preceitos se diz que “lá onde existe o Amor pelos homens, lá existe também o Amor pela arte” (médica). O exercício da medicina não é, assim, algo meramente científico ou técnico, mas é um ato de Amor. Cremos que o médico age eticamente, em prol de um mundo ético, quando age por Amor do outro dependente que o procura. Mas dizer qual deva ser sua ação em cada caso, traçar-lhe um rígido código, que reduziria a Ética a um receituário, seria, na verdade, retirar qualquer Substância Ética de sua ação. Poderia ele, com isso, ter a segurança do burocrata típico, que consulta o Estatuto dos Funcionários antes de fazer qualquer coisa e que está sempre em paz com sua Consciência estatutária, pouco lhe importando a Circunstância que envolve o outro. Mas, seria ele ainda, verdadeiramente um médico? [Roque Spencer Maciel de Barros]